Prêmio Boechat: A EDUCAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL

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Por Coletivo Comece Hoje
Investimento em educação política torna-se fundamental para manutenção da sociedade

Iniciativas educativas têm trabalhado na formação de jovens para o futuro político no Brasil e os resultados já começam a surgir

“Eu pretendo concorrer à Presidência da República”, afirmou Gustavo Silva Arcanjo, sem hesitar ao fazer a confissão. A fala veio acompanhada de um sorriso tímido, como se aquele fosse um sonho distante demais para alcançar e não seria errado dizer que, talvez, esse realmente seja um desejo a longo prazo para o morador de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, de apenas 16 anos de idade.


Também não havia lugar mais apropriado para fazer tal afirmação do que a Câmara Municipal de São Paulo, onde anos antes deu os seus primeiros passos na carreira política: filho de enfermeiros, Gustavo apresentou em 2017, aos 13 anos, uma proposta de projeto de lei para a detecção precoce do diabetes em alunos do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas em São Paulo.


“Eu comecei a estudar um pouco mais sobre o assunto e cheguei à conclusão de que o diabetes é algo bastante presente nas pessoas e elas nem sabem que o têm”, explicou Gustavo sobre o que motivou a idealizar a proposta. “Cerca de 50% das pessoas que têm, não sabem que têm e, no futuro,isso  pode acarretar em doenças ainda mais comprometedoras da saúde”. Os números batem com os dados divulgados no Atlas do Diabetes, em novembro de 2019, que revelou que a doença já atingia cerca de 9% da população mundial e metade das pessoas viviam com a condição sem terem conhecimento disso.

 

Foto: Arquivo pessoal

Gustavo Arcanjo tem 15 anos e estuda na Escola Comum

Na infância, o livro de cabeceira de Gustavo era o vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura de 1994 O Cidadão de Papel, de Gilberto Dimenstein, apresentado a ele pelo pai, Ariude Arcanjo. Na obra, o jornalista e criador do portal Catraca Livre aborda questões de cidadania e direitos humanos sobre crianças e adolescentes: “A rua serve para a criança como uma escola preparatória. Do menino marginal esculpe-se o adulto marginal trabalhado diariamente por uma sociedade violenta que lhe nega condições básicas da vida. Paz social significa poder andar na rua sem ser incomodado por pivetes. Isso porque em um país civilizado não existe pivete”, diz um trecho do livro. Sabendo disso, não seria estranho que Gustavo abraçasse a política tão cedo.

 

 

Aos seis anos, ao notar que os colegas eram vítimas de bullying na escola em que estudava, conversou com os pais dele e, junto com a direção da escola, organizou uma palestra para discutir o assunto e ajudar a conscientizar sobre a violência no âmbito educacional. Mais tarde, na adolescência, o jovem criou um grupo de estudos em outra escola: “Eu desenvolvi um projeto que idealizava há um ano. No JESPOL (Juventude Para Estudos Sociopolíticos), eu apresentava várias aulas de história política do Brasil e do contexto sociopolítico do país. Toda semana apresentava um novo tema e a gente debatia”.

O projeto existiu durante o primeiro semestre de 2019, mas acabou por falta de aderência. Apesar disso, Gustavo não desistiu da ideia e pensa em como disseminar o que teve a oportunidade de aprender. Para o futuro concorrente ao cargo mais alto do país, a educação política é algo de sumária importância: “A política está em tudo e não só no dia da eleição”, pontua.

Escolas do Legislativo

Ciente do privilégio que teve por ter sido apresentado à política tão cedo, Gustavo tem o desejo de que a educação política seja incluída nas grades de ensino de todas as escolas, algo que não é comumente visto. Para ter uma educação em política, jovens estudantes interessados devem procurar fora do âmbito escolar tradicional. Com a intenção de minimizar esse déficit, as Escolas do Legislativo surgem como uma opção para suprir essa demanda.


Elas são escolas do governo, previstas na Constituição Federal de 1988 para instruir servidores públicos nos níveis dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Com o tempo, no entanto, as Escolas do Legislativo evoluíram para abarcar a educação para todo cidadão brasileiro: “Elas assumem uma dupla missão, que é a qualificação do funcionário público e do agente político, ou seja, os vereadores, mas também a de educação para a cidadania, de educar toda a população, principalmente para os conceitos de cidadania, participação política e democracia”, explica Roberto Lamari, presidente da Associação Paulista das Escolas do Legislativo e de Contas (APEL) e vice-presidente da Associação Brasileira das Escolas do Legislativo e de Contas (ABEL).

“Na educação básica e fundamental do cidadão, não existe educação política, educação para a cidadania ou letramento político. As escolas têm procurado preencher essa lacuna”.

O Estado de São Paulo conta com ao menos 61 Escolas do Legislativo, em Câmaras Municipais, Tribunais de Contas e a Assembleia Legislativa. Ainda não há um projeto pedagógico para unificar o ensino político entre elas, mas os cursos são oferecidos dentro e fora desses espaços e o público-alvo é variado: “Eu gosto muito dessa ideia de trabalhar com crianças, pré-adolescentes e adolescentes. Eu costumo brincar que a minha geração já é uma geração perdida, [porque] nós não tivemos educação política [e] não ter educação política é não saber votar, é escolher mal o seu representante [e] ter representantes ruins”, afirma Lamari. “É comum a gente ouvir dizer que todos os nossos políticos são ruins, são corruptos, mas a gente esquece que os políticos não vieram de Marte, os políticos são daqui e são o reflexo da sociedade. Então, se nós temos políticos ruins, nós temos que admitir que a sociedade também é ruim, em termos políticos.”


Dessa forma, a educação política entra como uma ferramenta importante de transformação da sociedade e é fundamental para a manutenção do sistema democrático no Brasil. Lamari também reforça que, com o conhecimento básico de política, a população passa a entender a divisão de poderes e as competências dos governos federal, estadual e municipal, para que saibam a quem reclamar os direitos básicos do dia a dia. “Todo mundo sabe o problema que tem, mas não sabe de quem é a competência para resolver aquele problema”, explica. “Elas vão saber se o caminhão do lixo passa ou não na rua dela, se a água chega ou não, se a luz está cara ou tem algum problema, se a rua está esburacada, mas elas não sabem para quem reclamar. Essa é uma questão extremamente importante e nós, quando vamos dar as aulas, fazemos essa explicação.”


Ele conta que esse tipo de problema não é exclusivo de estratos menos privilegiados da sociedade, com maiores déficits educacionais, mas um problema geral: “Mesmo com pessoas de nível superior, dependendo do curso que faz, é muito comum elas não conhecerem essas competências”, exemplifica. “Quantas vezes nós não chegamos para dar aula e alguém fala: ‘Nossa, que lindo esse programa da prefeitura que vocês estão fazendo’. E nós explicamos que não é um programa da prefeitura, é da câmara municipal, e ela fala: ‘É a mesma coisa, não é?’. Não, não é a mesma coisa”.


Apesar de caminharem a passos miúdos e dependerem do engajamento da população, as Escolas do Legislativo têm tido resultados positivos na mudança de concepção de quem tem contato com elas e vêm colocando para escanteio a afirmação de que “política não se discute”. “Ninguém aqui quer tapar o sol com a peneira, porque todo mundo sabe que os políticos e os poderes constituídos são muito mal vistos pela maioria da população. Mas todos, quando conhecem os trabalhos realizados pelas escolas, veem que são escolas de excelência e funcionam muito bem, levando ensino gratuito e de qualidade”, declara. “É um processo ainda em construção. Ele é muito recente. À medida em que a população tem conhecimento, ela passa a gostar das escolas.”

Escola Comum


Iniciativas de educação política também têm surgido em momentos críticos da sociedade, como quando a democracia brasileira apresentou-se ameaçada. Foi o caso do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, que resultou na criação da Escola Comum, uma escola de formação sociopolítica para jovens moradores das periferias paulistanas.


A ideia foi cunhada pelo coletivo Multiforme, um grupo criado um ano antes por jovens com lutas e interesses em comum, principalmente em relação à defesa dos Direitos Humanos. Desde 2015, eles já realizavam palestras em escolas e ocupações de moradia, participavam de atos políticos e ações que denunciavam a violência estrutural nas periferias de São Paulo. Com o impeachment da ex-presidente, o coletivo percebeu uma fragilidade no sistema democrático e começou a pensar em formas de preparar os jovens para a política nos próximos anos.

 

“O objetivo inicial era o de preparar a juventude para o debate eleitoral de 2018. Nós focamos em trabalhar, naquele primeiro ano, em 2016, para que os jovens compreendessem o que estava em jogo nas próximas eleições”, explica Wil Schmaltz, advogado e cofundador da Escola Comum. “Mas à medida em que nós fomos trabalhando, percebendo a receptividade dos jovens para aquelas ideias, nós pensamos em algo um pouco mais amplo, que era uma formação continuada de um grupo de alunos, não só pensando na formação política deles, mas também em potencializar, estimular e

“A gente tem uma maioria branca ocupando espaços de poder, decidindo o futuro de toda uma população, enquanto temos outros grupos na sociedade subrepresentados”

Wil Schmaltz

Diferentemente de iniciativas como RenovaBr, de onde saíram eleitos deputados federais Tábata Amaral (PDT), em São Paulo, e Marcelo Calero (PPS), no Rio de Janeiro, além de outras 14 lideranças políticas formadas na primeira turma do curso criada pelo empreendedor e investidor Eduardo Mufarej, nas eleições de 2018, a Escola Comum não foca seus esforços na criação de candidatos políticos. Os estudantes, de 16 a 19 anos, são preparados para serem lideranças mesmo que não desejem ingressar em uma carreira política.

 

“Não é só [sobre] se lançar como candidato a um cargo eletivo, mas também dentro da área de atuação deles. [Para que] eles compreendessem a dimensão e a importância da política na profissão que fossem escolher”, conta Schmaltz. “Nós criamos a Escola Comum pensando em preparar para o debate eleitoral de 2018, mas principalmente para que aquilo fosse um pontapé inicial de uma trajetória política que pudesse influenciar o quadro do país.”

 

 “A gente tem uma maioria branca ocupando espaços de poder, decidindo o futuro de toda uma população, enquanto temos outros grupos na sociedade subrepresentados. As pessoas que mais são afetadas pelas políticas públicas são as que menos são incluídas nos processos de tomada de decisão”, acrescenta o advogado. “Nós pensamos que, para poder dar a nossa contribuição para a democracia do Brasil, precisávamos criar ambientes e espaços que estimulassem esses jovens a ocupar esses lugares de poder.”


Para dar início ao projeto, o Coletivo Multiforme precisou buscar parcerias. A primeira delas foi com o Clube de Mães do Brasil, que cedeu o espaço do Castelinho da Rua Apa, no bairro de Santa Cecília, no Centro de São Paulo, para que as aulas fossem realizadas. Os professores são todos voluntários e, além das aulas, os alunos recebem auxílio para transporte e alimentação.


Segundo Schmaltz, o orçamento ideal para um ano de projeto seria de 150 mil reais, mas em todos os anos a Escola Comum acabou funcionando com bem menos do que o estimado: “Nós temos trabalhado à base do escambo, ou seja, nós fazemos uma trabalho para alguém e, ao invés de pagar em dinheiro, ela paga fazendo alguma coisa [para a Escola]. Nós tentamos nos virar assim, mas não é o ideal, porque nós perdemos um pouco a qualidade do que poderíamos oferecer caso pudéssemos contratar o serviço que a gente precisa”, explica.


Ainda assim, o projeto persiste. A turma inaugural foi em 2018, com 30 alunos. No ano seguinte, o número caiu para 20 e, em 2020, fechou em 25 selecionados. Todos os interessados se inscrevem para participar e, caso a inscrição seja aceita, são chamados para uma entrevista, que determina quem ficará com uma das vagas.

 

Com aulas semanais durante um ano, os alunos são instruídos sobre assuntos que, no dia a dia, já fazem parte das vidas deles como jovens moradores de periferias de São Paulo, mas sob uma ótica diferente, politizada: “Nós falamos que ali é uma das várias etapas de aprendizado que eles terão ao longo da vida. Nós não temos expectativas de que eles saiam prontos para nada; o que esperamos é que eles saiam conscientes da importância de se envolverem na política”, esclarece Schmaltz. “É legal ver esse processo de apropriação do debate do que está acontecendo na sociedade, algo que eles não se viam fazendo antes da Escola Comum. Nós vermos eles se sentindo incluídos nessa discussão já o resultado que nós esperamos desse ano de Escola Comum”.

 
 

Ana começou a se interessar pela política nas aulas de Sociologia do Ensino Médio

Foto: Arquivo pessoal

Ana Laura Cardoso, 26, rede Emancipa

Foi em um projeto como a Escola Comum que Ana Laura Cardoso de Oliveira acabou se encontrando politicamente. Ela começou a se interessar por cidadania e política durante as aulas de Sociologia no Ensino Médio e, após terminar os estudos, ingressou em um cursinho pré-vestibular ministrado pela Rede Emancipa de Educação Popular, que surgiu em Itapevi, na Região Metropolitana de São Paulo, em 2007.

 

“Me descobri como sujeito, passei a discutir a negritude, parei de passar chapinha e isso cria um efeito dominó”

Apresentada com novas formas de enxergar o mundo, não só pelas aulas, mas também por rodas de conversa organizadas dentro do projeto, Ana Laura despertou para novos temas sociopolíticos, principalmente alguns que a atravessam, como o feminismo e o racismo: “Me descobri como sujeito, passei a discutir a negritude, parei de passar chapinha e isso cria um efeito dominó”, afirma, revelando que, a partir do que aprendeu, conseguiu levar mais informações para outras pessoas. Hoje com 26 anos, ela não é só uma ex-aluna, mas atua dentro da organização.

Atualmente, a Rede Emancipa conta com cerca de 40 unidades em mais de 20 cidades de sete estados brasileiros. Além de ajudar estudantes a ingressarem nas universidades, o projeto atua na transformação da sociedade de outras formas e trabalha com turmas de alfabetização de jovens e adultos, preparação para concursos, educação infantil e diversas outras formas de fazer com que, assim como a Escola Comum, grupos subrepresentados possam ter, futuramente, participação na tomada de decisão sobre o próprio futuro.



Ana Laura é o que podemos imaginar de Gustavo no futuro. Além da atuação política antes mesmo de atingir a maioridade, o jovem pretende cursar Direito após se formar no Ensino Médio e, antes disso, integra os 25 alunos da turma de 2020 da Escola Comum. Ele insiste que a educação política é fundamental para que realmente ocorram mudanças na sociedade: “Essa é a forma mais fácil de mudarmos as coisas que estão ao nosso redor. Há outras maneiras, com certeza, mas eu acredito que essa é forma mais fácil de nós, realmente, conseguirmos ajudar. Nós ajudamos outras pessoas e essas outras pessoas vão formar uma rede e espalhar para mais pessoas”.

Depois, ele ainda pretende levar o JESPOL, o grupo Juventude Para Estudos Sociopolíticos, para mais pessoas, através de um site e um canal no YouTube. Para os que não têm acesso à internet, Gustavo já tem uma solução: dar palestras em lugares públicos e movimentados, como praças. O jovem não tem certeza se as pessoas pararão para ouvi-lo, mas para quem tem o desejo de ser Presidente da República, mal não fará o treinamento.